Da última vez que eu estive filando o chá no TDB e levando bronca do tio Mi por sempre estar choramingando pelo mesmo problema (le coeur, ah, toujours mon pauvre coeur!) ele lembrou-me de um de seus textos e disse que talvez eu precisasse morrer. Mas acho que estive morta tempo demais. Do que eu preciso mesmo agora é viver.
Eu me afastei muito, de muitas coisas. E tentando achar um pouco de mim dentro desse solo ressecado ao meu redor percebi que sinto falta da lua. E de empunhar meu athame. E das poções do meu caldeirão. E do poder doce da noite, do seu sabor suave e delicado que fazia minha vida mais doce... Eu me perdi de mim. Por vários motivos, e talvez até porque tivesse uma certa vergonha de mostrar essa parte de mim ao homem que estava a meu lado, que sempre andou por caminhos mais elevados enquanto eu sempre fui a bruxa simples meio maluca da floresta. Boba, pois ele sempre aceitou meus cuidados, meus chás e meus cristais, embora eu nunca tenha ousado performar um ritual na frente dele...
E foi como uma planta seca que vai se enroscando encarquilhada, que eu fui ressecadamente me enrolando em torno de mim, minha haste sem verdor encolhida para baixo... Mas omnia mutantur etc etc. E buscando velho conhecimento na web, pegando aqui e ali pedaços de coisas que eu já deveria saber par coeur mas julgava esquecidas, eu percebi. Já vinha sentindo isso nos últimos dias, porque quando eu olhei a lua cheia ela estava lá, redonda, brilhante, linda - e me chamando. Eu mal ouvi. Eu mal senti. Como a arruda teimosa que insiste em não ter o mesmo destino das outras plantas da minha casa (o que aconteceu com meu tão invejado dedo verde?!), eu acho que finalmente recebi uma gota de água. Não o suficiente para conseguir recuperar minha folhagem esplendorosa e conseguir novamente dançar a dança do impossível diante dos olhos arregalados dos que não crêem em nada, mas uma gota que me lembrou que eu tenho sede. E mais: me lembrou de quando eu tinha lua em abundância na minha vida e corria com os lobos. De um ritual aqui e um uso esquecido de uma ferramenta simples ali eu começo a me lembrar como era. E como era bom!
Eu vivi numa casa onde o mato escondia ervas medicinais e temperos que brotavam espontâneos para dar sabor a minhas receitas. Depois morei num sobrado onde a lua cruzava por cima da casa, no início da noite me permitindo tocar flauta para a lua deitada na rede em minha varanda, cercada por minhas plantas, o filho deitado no meu colo, e de madrugada tendo a sua luz majestosa penetrando pela janela do meu quarto para banhar meus sonhos... O atual lugar onde eu moro, por sua vez, me parece uma prisão. Meu primeiro ano ali foi bom, mas quando a primeira vizinha foi embora e chegou a atual, minha vida ali se tornou caos. Não que os outros apartamentos fossem perfeitos, embora eu sempre tenha tido cozinhas grandes nenhuma delas me dava gosto de cozinhar... Mas essa vizinha se espalha por toda a área ao meu redor como uma erva daninha, a harmonia que antes havia no lugar agora se transformou numa favela, e pela primeira vez não posso celebrar meus rituais ao ar livre e me sinto prisioneira dentro da minha própria casa, a ponto de não sentir desejo de sair de casa para regar minhas pobres abandonadas e queridas plantas. Não há poesia neste lugar. Curiosamente, a desarmonia irritante que costuma imperar do lado de fora da minha casa não toca o meu leito, embora o meu quarto seja o único da casa onde a chuva tenha encontrado caminho para se infiltrar... Eu não tenho paciência para coisas incompletas, e este apartamento incompleto com problemas incompletos parece deixar incompleta a minha própria vida. É hora de mudar dali, e rápido! Minha privacidade adorada, minha intimidade delicada têm sido violentadas ali tempo demais.
Se estou reclamando disso é porque pela primeira vez me sinto sem chão verde onde pisar. E romper a crosta endurecida e marrom da casca é duro, brotar verde novamente é difícil, embora cair de amores pela lua seja fácil e pegar na mão dela apenas uma questão de esticar a minha. Talvez eu me sinta sozinha, sei lá. Mas não foi assim que me ergui a primeira vez, contra tudo e contra todos? Se eu for forte o suficiente para sobreviver, que sobreviva para adquirir o conhecimento necessário. Senão, que eu morra. E de que adiantaria tentar trilhar o caminho inteiro sendo levada pela mão de alguém apenas para descobrir que sem ela não saberia me virar sozinha? Learning to fly. A lição é cruel, mas não vai ser a primeira vez que terei de re-aprender a voar, não?
Por enquanto apenas sei que acariciei suavemente as ferramentas de meu ofício com gosto e saudade. E que o simples toque me trouxe um arrepio de vida pela ponta dos dedos. Talvez seja hora de usá-las para abrir uma fonte e irrigar minha terra seca, para que finalmente os raios da lua encontrem caminho por onde fertilizá-la novamente...