sexta-feira, dezembro 31, 2004

"Quantas pessoas existem aqui nesta cama entre eu e você?"
"Como assim?"
"Neste momento, aqui, para mim só existe você: eu vivo para o momento presente, eu amo fazer o que estou fazendo pelo simples fato de o fazer, e o fazer com você. Mas você carrega contigo todas as mulheres que vieram antes de mim, e todas as mulheres que virão depois. Não importa meu jeito de menina que se entrega misturado com um lampejo de fogo e desejo no olhar, não importa o calor febril das minhas coxas, as curvas das minhas coxas e meus cabelos úmidos de suor. Eu não estou sozinha nesta cama com você. Todas as outras mulheres que você um dia possuiu ou desejou estão aqui contigo. Essa é a diferença entre sexo apenas e paixão: na paixão, na cama, só existem dois."

Estou mentindo, eu penso. Há uma espada rubra flamejante que me separa há muito tempo de todos os homens, e ela tem uma data gravada nela, 22 de novembro de 2003, e não importa quanta força eu faça ou de que forma eu tente destrui-la, ela permanece ali. Eu a carrego para todos os lugares, não consigo me livrar dela, posso vê-la aqui agora, neste momento, ardendo sobre mim enquanto converso, entre nós, na cama. Há um fantasma na minha cama, neste momento, em todos os momentos. Eu não consigo me entregar a ninguém. E no ano domini de 2004, não há cavaleiros do ciclo arturiano, não há ninguém para arrancar esta espada de onde ela foi fincada, para parti-la em mil pedaços sob sua bota, e pacientemente me curar desta ferida. Eu sou Elaine, e não Guinevere. Até aí, nunca me permitiria ser ela, sempre achei Guinevere uma grande idiota. Mas não existe Lancelot nestes tempos modernos e tão vazios. Ou mesmo Galahad, ou Gawain. Não há, não há cavaleiros. Há a espada, há eu e minha torre de pedra no coração da floresta. Me acostumei com a solidão, e o desespero volta apenas em noites como esta, quente, abafada, assombrada por pesadelos sob a lua cheia. Há dias que eu odeio, como 25 de dezembro, e dias que me lembram da minha dor que faz aniversário, como 31 de dezembro. Um ano passou e a espada não perdeu sua força cruel, embora eu tenha me habituado a aceitar sua presença e não olhar para ela. Mas ela existe, está aqui, sua ponta de ferro duro e cruel pode ser sentida todas as vezes em que por qualquer motivo, cometo a ousadia de me permitir tentar viver. Eu grito, rangendo os dentes: deixe-me em paz! Deixe-me viver! Me deixe ser livre novamente! Ela permanece, impassível.

30 meses, dizem os cientistas, é o tempo biológico que dura uma paixão. 3 meses, 3 luas cheias, minha memória diz, é o tempo que a paixão leva para fenecer. Nesses três primeiros meses de descoberta, de fascinação pelo outro, só há duas pessoas na cama, eu e você. E você só tem olhos para mim e eu só tenho olhos para você. Eu prefiro esperar meses para ter sexo com paixão do que ter todos os dias sexo só por prazer...

A intimidade mata o romance. Logo o fascínio cede e você vai começar a mostrar sinais de todas as pequenas marcas psicológicas do que acha que é a maneira certa de possuir uma mulher. A partir da certeza da conquista, da posse, você se permitirá mostrar defeitos e manias e se sentir petulantemente seguro de que estou tão fascinada por você e tão necessitada de você que não irei criticá-lo ou abandoná-lo porque preciso de você. Pequenas implicâncias e críticas, e antes eu tinha porte no andar e meus gestos eram refinados, agora sou apenas esnobe, antes minha inteligência o atraía, agora sou metida e nerd. Nunca conheci um homem que escapasse dos estereótipos, que fugisse dos padrões, que fosse realmente diferente. Basta se sentir seguro o suficiente e você saberá como ele realmente se parece. Quando a luz dos olhos dele passou para dentro dos meus olhos eu soube que aquela chama iria se apagar. Sou guardiã de inúmeras chamas dentro de mim. Alguém tem de velar por elas, elas têm de viver em algum lugar.

Eu prefiro não amar. Não sentir nada por ninguém. Nunca conheci alguém sequer remotamente parecido comigo no jeito de pensar, sentir. Alguém que eu pudesse simplesmente falar o que eu penso e me sentir compreendida, não criticada. Ou pior, saber que aquela pessoa simplesmente não poderia me entender por mais que eu me explicasse: limites. Pessoas são limitadas. Não enxergam além de suas redomas. Amei, amo homens enxergando seus defeitos e qualidades, sou capaz de em apenas alguns momentos saber quanto tempo suportaria ficar ao lado de determinada pessoa, quanto tempo levará até que seus limites me sufoquem ou quanto vale sacrificar e me anular para me submeter a ficar a seu lado. Eu sempre amo uma pessoa por inteiro, defeitos e qualidades, limites e extravagâncias, sabendo o que me espera, recompensas e sacrifícios, o resto é apenas questão de tempo e escolher se quero viver aquela experiência ou não. Mas estou cansada de amar o que a vida me oferece, cansada de mais do mesmo. E todos os cavaleiros morreram há muito tempo, e eu estou sozinha num mundo estranho.

Eu disse ao poeta: você pode ter meus lábios ou você pode me ter por inteiro. No momento há alguém no meu corpo, há alguém no meu coração e há alguém na minha alma. Você prefere me ter por inteiro, ou apenas meus lábios? Ele me disse "os lábios seriam um bom começo". E eu chorei por ele, chorei por dentro. Se ele tivesse esperado poderia ter tudo, mas tudo o que ele queria era mais do mesmo.

Meu anjo vadio não veio, não houve dança esta noite. Mas houve vinho e um cigarro fumado criteriosamente e Fante me fez companhia. Há amantes melhores para uma noite de lua cheia, mas este foi, talvez, o mais apropriado. Em seu livro um terremoto, fora dele tsunamis. Como eu poderia não ter pesadelos com a anima mundi manchada pela sombra de 12.000 mortes pairando sobre ela?