domingo, junho 16, 2002

CLARICE - Renato Russo

Estou cansado de ser vilipendiado, incompreendido e descartado
Quem diz que me entende nunca quis saber
Aquele menino foi internado numa clínica

Dizem que por falta de atenção dos amigos, das lembranças
Dos sonhos que se configuram tristes e inertes
Como uma ampulheta imóvel, não se mexe, não se move, não trabalha.
E Clarice está trancada no banheiro
E faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete
Deitada no canto, seus tornozelos sangram
E a dor é menor do que parece
Quando ela se corta ela esquece
Que é impossível ter da vida calma e força
Viver em dor, o que ninguém entende
Tentar ser forte a todo e cada amanhecer
Uma de suas amigas já se foi
Quando mais uma ocorrência policial
Ninguém entende, não me olhe assim
Com este semblante de bom samaritano
Cumprindo o seu dever, como se fosse doente
Como se toda essa dor fosse diferente, ou inexistente
Nada existe prá mim, não tente.
Você não sabe e não entende
E quando os anti-depressivos e os calmantes não fazem mais efeito
Clarice sabe que a loucura está presente
E sente a essência estranha do que é a morte
Mas esse vazio ela conhece muito bem
De quando em quando é um novo tratamento
Mas o mundo continua sempre o mesmo
O medo de voltar prá casa a noite

Os homens que se esfregam nojentos
No caminho de ida e volta da escola
A falta de esperança e o tormento
De saber que nada é justo e pouco é certo

E que estamos destruindo o futuro
E que a maldade anda sempre aqui por perto
A violência e a injustiça que existe
Contra todas as meninas e mulheres
Um mundo onde a verdade é o avesso
E a alegria já não tem mais endereço
Clarice está trancada em seu quarto
Com seus discos e seus livros, seu descanso.
Eu sou um pássaro
Me trancam na gaiola
E esperam que eu cante como antes

Me trancam na gaiola
Mas um dia eu consigo existir
E vou voar pelo caminho mais bonito

Clarice só tem 14 anos.

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Já fui como Clarice. O aço frio e às vezes meio enferrujado do estilete desenhando caminhos de dor e sangue na palma da minha mão, desenhando as letras de nomes de pessoas que eu, no meu desespero, tentava esquecer. Tentando esquecer, tentando não amar os homens e seu mundo. Eu tinha 17 anos. Algumas vezes a dor é tão forte que cravar as unhas no braço até ele sangrar não faz diferença: dói menos, tão menos... A ferida maior nunca é aparente quando o desespero é demasiadamente grande... Eu acreditava que quando uma pessoa chegava a doer em mim a esse ponto, se eu marcasse seu nome no meu corpo, tornando a dor física, a cicatriz da ferida traria também o esquecimento desejado... Hoje não existem marcas na minha mão... As cicatrizes ficaram apenas no meu coração. E não me venham falar sobre sanidade mental, que eu sou louca. Sei disso há 26 anos, qual a grande novidade?