terça-feira, fevereiro 11, 2003

Um arrepio me percorre a espinha ao saber o que será exigido de mim neste Samhain...
Pensei que já havia passado por todas as katabasis necessárias nesta vida... Minha descida aos infernos marcada pela morte de dois filhos, um casamento com um messias negro, sete anos vivendo na sombra e ao me separar, trazendo meu filho em meus braços e vindo para a luz do dia, sabendo irremediavelmente que a menina que eu fui se tornou a mulher que hoje sou à custa de um longo aprendizado, ter todos os meus conceitos e ilusões arrancados de mim por bem ou por mal, minha personalidade destruída e reduzida a nada... Pequenas mortes me esperavam a cada dia e a cada dia eu renascia... Foi uma katabasis cruel e torturante, só quando me libertei tive olhos para enxergar o que realmente foi aquilo tudo. As pessoas acham que ser iniciado é apenas representar uma farsa em um ritual ao fim de um período de estudos... Bem, o longo período em que desci aos infernos foi bem mais real e cruel do que isso. E eu fui iniciada pelo ritual mais antigo do mundo, e o mais cruel... mas agora, despida de tudo que fui, descubro que me será exigida uma katabasis final. E tenho MEDO.

Casamos no templo budista de Santa Teresa em julho de 95. Passamos o final de semana em meu antigo sítio no coração das montanhas do interior do Rio. Na primeira noite da lua de mel, descemos até a cidade. Ele não ouviu meus avisos de que a serra era diferente da cidade e de que deveríamos voltar cedo porque a noite caía rapidamente e nos pegaria em meio à trilha na volta, uma hora de caminhada em uma estrada sem luz alguma, no meio de floresta nativa.
Ao retornarmos, dando os primeiros passos na estrada para o longo caminho de volta, o dia rapidamente deu lugar a uma noite escura, sem lua no céu para nos guiar. "Que seja", pensei. Pedi licença aos senhores da mata e espíritos da floresta e começamos a subir em silêncio, respeitosamente. Apenas a luz das estrelas mostrava um pouco do caminho à frente, o perfume embriagador do verde da mata e das flores locais, o ruído das águas próximas dos pequenos riachos e da grande cachoeira e todo tipo de pequenos ruídos que os seres noturnos da mata produzem...
Embora cheia de apreensão por ele, notei que não tinha medo. Antes, sentia respeito e uma profunda paz. Era eu que o guiava e a floresta para mim não tinha mistérios, assim como o caminho a seguir. Por um longo momento pareceu que minha caminhada transcendia as barreiras do tempo e toda a floresta era iluminada sutilmente por uma luz estranha, pura... Eu era filha daquelas matas, e sabia que estava segura, mas trazia em mim respeito. Não havia ilusão de que estava protegida por uma força mágica, eu sabia de todos os perigos daquelas matas, cobras e onças apenas algumas das coisas que podiam passar por nós...
Me veio também uma súbita compreensão, que entristeceu meu coração: EU era filha da floresta, da Senhora daqueles caminhos, da força ancestral que abençoava e regia aquele lugar... ELE não. Com todo seu conhecimento e poder, era apenas um mago da cidade, acostumado a lidar com energias ritualísticas até complexas, com todas as formas de poder, a forçar o mundo a se dobrar á sua Vontade, mas desligado das forças mais simples e essenciais do mundo... As energias com que ele lidava simplesmente eram completamente divorciadas da essência das forças que habitavam a floresta... e ali, naquele lugar sagrado, ele não tinha poder algum. Nenhum dos seus rituais ou invocações poderiam salvá-lo... Como meu amor me parecia pequeno e limitado quando visto pelos olhos da sabedoria estranha que fluía através de mim enquanto andávamos na noite escura no coração da floresta... Aquela noite fiquei acariciando demoradamente seus cabelos cacheados, sentindo um misto de amor, compaixão e piedade... E continuo voltando à floresta, mas nunca mais tive de passar por uma noite escura, até agora.